Começamos a viagem no dia 28 de outubro e agora chegamos ao 14.º dia de viagem. A primeira parada foi em Lisboa, onde deveríamos ter passado apenas uma hora, mas acabamos ficando metade de um dia, pois um atraso de uma hora no voo da TAP nos fez perder a conexão para Paris. O mal-estar do Mathias não teve nada a ver com a perda da conexão, pois o monitor do aeroporto já dizia que o embarque para Paris estava encerrado no momento em que pisamos no Terminal.

Ficaríamos dois dias passeando em Paris, mas acabamos chegando lá somente dez horas da noite, o que nos deixou apenas as 24 horas que a Letícia narrou.  No dia seguinte, o TGV nos trouxe para Aix-en-Provence, onde chegamos novamente de noite. Ficamos no norte da cidade, na Avenida Jean Moulin, que é uma das principais entradas automobilísticas.

Cozinha da Primeira casa em Aix, na Avenida Jean Moulin

Esta é uma cidade lindíssima, com um centro maravilhoso, que me lembra o que de mais bonito vi em Florença, Granada e Cartagena: uma velha cidade medieval, com suas vielas estreitas, mas não tanto como os bairros góticos de Paris ou Barcelona. As paredes tem um tom terroso, às vezes mais para o ocre, às vezes mais para um leve rosado, mas sempre limpas e luminosas, resplandecentes à cada vez que são invadidas pela luz amarelada do outono na Provence.

É o centro de cidade mais lindo que já vi, em grande parte porque o calçamento das ruas é feito também de pedras claras, o que torna o conjunto incrivelmente luminoso e acolhedor, e porque todo o centro da cidade é uma zona de circulação exclusiva de pedestres (com algumas bicicletas e eventuais automóveis de serviço e de moradores).

É possível atravessar todo o centro em 10 minutos de caminhada, e o seu formato circular gera uma situação idiossincrática: ele funciona como um imenso balão, e todo o trânsito pesado (inclusive dos ônibus) precisa contornar o centro da cidade. Como a "avenida contorno" tem somente 3 faixas, ela opera apenas em sentido horário, o que dificulta a vida de quem gostaria de virar um pouco para a direita. Boa parte dos ônibus faz todo o circuito em torno da cidade, sendo que cada um deles escolhe uma rua para se afastar do Centre Ville e levar as pessoas para os locais mais periféricos.

Mapa do sistema de ônibus de Aix, dando a volta em torno do Centre Ville

Ao contrário de Brasília, é uma cidade boa para quem anda a pé e desafiadora para quem deseja andar de carro. Uma das adaptações foi a criação de vários estacionamentos, na periferia da cidade, onde estacionar o carro dá direito a um passe de ônibus para que a pessoa possa se deslocar. Mas os trajetos de caminhada nem sempre são tão curtos, sendo comuns deslocamentos através do centro, que exigem de um a dois quilômetros andando, ou seja, até 1/3 de uma asa, para as medidas brasilienses.

Da casa onde estou agora, andar até a Universidade toma 30 minutos, ou seja, mais ou menos o que é necessário para andar de boa parte da Asa Norte até a UnB. Com a diferença de que as ruas daqui são bem menos acolhedoras para as bicicletas que as de Brasília... aqui, há mais patinetes elétricos do que bicicletas nas ruas.

Fonte dos golfinhos (com escamas?!), no meio do caminho para a escola

O clima do outono aqui parece o de Brasília, especialmente o da minha infância, quando a cidade era mais fria. Pouca chuva, manhãs geladas, céu azul profundo e um sol que vai esquentando a cidade aos poucos, até que todo mundo fique liberado dos casacos matinais. Acho que a maior diferença é que os franceses não tiram o casaco por nada e se agasalham por qualquer coisa, ao menos nesta época. No mesmo clima em que eles andam encapotados com 3 camadas, nós poderíamos andar de chinelos, bermuda e camiseta, ou com um casaco leve.

Sempre me impressiona a capacidade francesa de ficar suando dentro de suas roupas, em vez de tirar o casaco. Acho que é a cultura daqui, em que as pessoas mostram tipicamente muito pouco do corpo: braços e pernas seguem normalmente cobertos, mesmo em climas bastante amenos. Comparando com o
Brasil, bem pouca gente faz execício ao ar livre, seja correndo, andando ou pedalando.

A universidade é linda. O prédio do Direito é fabuloso e revela uma cultura de aulas bastante diversa: grandes salas de aula, para 100 ou 200 alunos, com microfones para os professores, projetores e toda uma parafernália que privilegia aulas magistrais, centradas em uma preleção que os estudantes buscam copiar em seus notebooks, fazendo com que o maior barulho nas salas seja o dos teclados. O ritmo da fala dos professores é lento, para dar tempo para as anotações. O design favorece a cópia e não o diálogo e as perguntas.

Mas a arquitetura geral favorece o encontro das pessoas. Fora dos prédios, há uma série de mesas, de parapeitos grandes, de largos espaços de circulação, em que as pessoas podem sentar, conversar e aproveitar a convivência. Por outro lado, não vi esse mesmo comportamento por parte dos professores.

Crianças na frente do prédio da Faculté de Droit e Sciences Politiques. O laboratório fica no último andar, de onde sai a escada que leva para aquele mirante que se vê no alto da foto, de onde se vê toda a cidade.

Aprendi hoje que os professores de direito daqui são como eram os do Brasil antes do REUNI: quase todos têm outras atividades profissionais, o que faz com que sua presença na universidade seja reduzida tipicamente à preleção de suas aulas, dando pouco espaço para uma convivência mais intensa no ambiente acadêmico. Além disso, creio que enfrentam aqui o mesmo refluxo da pandemia, que nos levou todos a trabalhar remotamente, esvaziando os espaços de convivência universitária. Quem não tem uma obrigação estrita de permanecer na universidade, está em trabalho remoto ou em outros afazeres, o que diminui bastante a possibilidade de encontros acadêmicos aleatórios com outros docentes. Isso gera um desafio para o estabelecimento de laços mais estreitos com a academia francesa, mas vamos ver as portas que podem ser abertas ao longo de uma estada mais longa. Certamente, um período de poucas semanas não daria margem a trocas mais interessantes.

Mas dei sorte de que o diretor do meu Laboratório fica muito tempo na sua sala e é um dos poucos professores de dedicação quase exclusiva à docência e á pesquisa. Ele é um cara da minha idade, que é um ótimo docente (tenho assistido às aulas dele) e que é um dos principais nomes do país em justiça preditiva, que é o uso de instrumentos de informática para prever as atividades dos tribunais. E a biblioteca do centro é ótima, tendo muitas coisas que não são acessíveis pela Internet, pois a academia francesa não está toda contida nos sites da pirataria acadêmica global.

Voltando para o dia a dia, nós já aprendemos a lógica dos mercados, que ocorrem três dias por semana e vão definindo o ritmo das nossas compras, especialmente de vegetais. Temos cozinhado bastante, comido mais em casa do que fora, mas já temos um restaurante repetitivo: além do Pitaya, fomos 3 vezes ao L'Escargot, um restaurante médio, próximo da Universidade, em que as crianças comem o saudabilíssimo prato de hambúrguer com fritas, enquanto os adultos comem o prato do dia.

Segundo (em mais gostoso) dia no L'Escargot

Os dias aqui agora vão se tornando mais repetitivos, com as crianças na escola, a Letícia no teletrabalho e o estabelecimento da minha rotina de trabalho na universidade, onde me foi disponibilizada uma sala que, apesar de conjunta, somente eu utilizo. Ganhei uma chave que abre todas as portas do Laboratório, o que permite que eu vá a qualquer hora, uma senha para usar o ótimo computador disponível, acesso ao wifi da universidade, às várias bibliotecas e também ao restaurante reservado aos professores e funcionários (que eles chamam de personnel).

O único passeio mais longo que fizemos foi a Marselha, que é bem próximo, e à qual certamente voltaremos mais vezes para conhecer melhor. Então, essa primeira quinzena foi consumida no processo de ambientação, na burocracia de inscrição das crianças na escola, na obtenção dos passes de transporte e na criação do ambiente para o trabalho e o estudo. Felizmente, as crianças estão se adaptando muito bem e hoje, inclusive, foi o primeiro almoço deles na escola, o que significa que foi o primeiro dia em que eu pude ficar o dia todo na universidade, ou seja, até 16:30, quando pego as crianças na escola, deixo brincar um pouco no parque e depois caminho com elas de volta para casa.

Escola das Crianças: Jules Ferry

Amanhã começa a segunda fase da viagem, quando nos mudaremos para o apartamento no qual permaneceremos até as férias das crianças, daqui a um mês e meio, e que fica bem em uma área bem central, nas fronteiras do Centre Ville, a 50 metros da Rotonde, que é o principal cruzamento da cidade. Vamos ver que novidades essa segunda fase nos trará.