A Cours Mirabeau é uma das principais ruas da cidade, sendo a via mais ampla do centre-ville, com suas largas calçadas. Essa rua ocupa o que já foi um dia a parte sul da antiga muralha de Aix, o que significa que ela marca a fronteira do que foi propriamente a cidade medieval.

No século XVII, decidiu-se ampliar a cidade para o sul, para acomodar as mansões de uma nobreza que se expandia por meio da atribuição de títulos nobiliárquicos a uma burguesia crescente, que não tinha espaço para se instalar nos limites da velha cidade murada.  Essa era a chamada nobreza togada, ligada ao judiciário e ao parlamento, que se diferenciava da antiga nobreza de espada, que exercia funções basicamente militares.

A necessidade de ampliar o espaço físico de uma aristocracia crescente fez com que fosse derrubado o antigo muro sul da cidade, dando espaço para a incorporação de um bairro planejado: o Quartier Mazarin, assim nomeado em homenagem ao cardeal que promoveu a sua construção. Embora suas ruas sejam estreitas como as tortuosas vielas medievais, as ruas  do Quartier Mazarin são retas e longas, recortando quarteirões retangulares onde a burguesia enobrecida edificou os seus casarões barrocos.

As ruas retas que marcam o Quartier Mazarin.

As mansões do Quartier Mazarin são até hoje chamadas de hôtel, nome que designava as antigas casas de famílias aristocráticas. Duas das principais galerias de arte da cidade são o Hôtel de Caumont e o Hôtel de Gallifet, cuja foto está no início do post, que são chamados de hôtels particuliers, para diferenciá-lo dos hotéis que alugam quartos para o público que pode pagar por eles.

Se você consegue ver o fim da rua e as casas tem alturas regulares, então é quase certo que você estará na parte barroca da cidade, e não na medieval. Em um ótimo artigo do Le Monde, com o sugestivo título de Aix-en-Provence, barroca e elitista, Michel Samson explica que do lado direito da Rue Mazarine, sucedem-se os célebres hotéis particulares com fachadas italianas, enquanto do lado esquerdo, transformadas em lojas ou garagens, estão os antigos estábulos, de perfil mais baixo, "onde os cocheiros e cavalos esperavam quando as carruagens estavam livres dos seus nobres passageiros".

Vista da Rue Mazarine, a partir do oeste.

Por acaso, tirar fotos de Aix durante o dia é um desafio de equilíbrio, pois há um contraste muito grande entre o céu claro e as ruas sombreadas. O automático da máquina normalmente gera uma exposição muito grande, que torna visíveis os prédios, mas estoura completamente o céu, que fica branco, em vez de azul, como na foto abaixo.

Rue Mazarine

Porém, se ajusto a exposição e o ISO para poder captar o azul do céu e o amarelo das folhas outonais, os edifícios se perdem no breu.

Essa sinuca de bico não deixa nenhuma saída boa, exceto um photoshop que simule a compensação que é feita por nossos cérebros, que juntam algo como os prédios da primeira foto com o céu da segunda, ambos relativamente fiéis à iluminação e às cores que eu conseguia enxergar no meio dessa tarde de outono.

E tem horas que nem adianta buscar um meio-termo, pois o resultado fica sendo uma foto sem graça, com um céu esbranquiçado, uma luz que em nada se parece com o dourado que eu via e prédios ainda escuros demais para serem bem percebidos. É frustrante quando, depois de várias tentativas, o melhor que consigo é algo como na foto abaixo, cujo contraste na iluminação inviabiliza um equilíbrio decente, que faça jus à beleza da paisagem que Cezanne e Zola tinham quando crianças, ao sair da escola primária em que passaram anos como amigos inseparáveis.

Tentativa frustrada de equilíbrio da luz no Quartier Mazarin

Uma das marcas do Quartier Mazarin são as fontes barrocas que ficam no entroncamento de suas vias. A principal delas é a fonte da Place des Quatre Dauphins, da qual já falamos no post da chegada a Aix, pois ela ficava no meio do caminho para a escola das crianças, quando estávamos em nossa primeira casa. Agora estamos na segunda, que fica na Avenida des Belges, pertinho da Cours Mirabeau.

Vista da janela, sobre a Avenue des Belges.

As velhas muralhas não existem mais. Em seu lugar foi construído um anel viário que circunda o centro. No cruzamento desse anel com a Cours Mirabeau,  fica a Rotonde, um balão que pode ser considerado o principal nó viário da cidade e que posso ver da varanda enquanto escrevo estas palavras. Pela Rotonde passam quase todos os ônibus e, com isso, é nele que as pessoas conseguem fazer a comutação entre as linhas. A rua em que estamos é bastante movimentada, para os padrões daqui, porque ela liga a Rotonde à Estação Rodoviária (Gare Routière), de onde parte a maioria dos ônibus, como pode ser visto no plano da empresa de transportes, contido na postagem sobre o início da temporada axoise.

Rotonde, vista a partir do norte.

Se partirmos da Rotonde e caminharmos rumo ao centro, é notável a diferença entre o modo como são ocupados os dois lados da Cours Mirabeau, originalmente planejada para as carruagens aristocráticas. Do lado esquerdo, na faixada norte, enfileiram-se restaurantes com mesas na rua, que se aproveitam do fato de que a inclinação do eixo do sol faz com que este lado receba uma iluminação mais intensa e constante. Do lado direito da rua, ficam bancos e outros serviços que não dependem de tanta luz e calor. Também ficam as barraquinhas da feira de natal, como é possível ver na foto abaixo, tirada no final de novembro.

O sol do outono, no meio da tarde, iluminando a face norte da Cours Mirabeau

Uma ótima descrição dessa rua é feita por Peter Mayle, em seu inspirador livro Um ano na Provence, escrito no final dos anos 1990, e cuja leitura foi responsável por despertar minha curiosidade por esta região, que visitei pela primeira vez ainda no milênio passado.

Ana posando na Cours Mirabeau

Um dos riscos de andar pela Mirabeau é que demora tanto para passar um veículo que os pedestres tomam o velho caminho das carruagens, como se a via fosse exclusiva para pedestres. Mas, quando menos se espera, aparece por trás de você uma bicicleta a toda velocidade, uma moto ou mesmo o carro de algum dos moradores. E aí Ana segue cantando "o acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído...".  

O legado dos velhos casarões é o de ruas agradáveis de se caminhar, mas com edifícios que continuaram sendo primordialmente residenciais ou foram adaptados para o uso em negócios que precisam de grandes espaços, como galerias de arte ou hotéis de luxo, destinados a um público tão aristocrático como o dos habitantes originais do bairro. O resultado é um espaço tranquilo e bonito, com o discreto charme da burguesia aristocrática, mas sem a vida do bairro gótico, com suas ruas cheias de pessoas atraídas pela efervescência das feiras, bares e restaurantes que se espalham pelas tortuosas vielas da cidade medieval.

Mas devo reconhecer que, no extremo oeste do Quartier, em volta da Igreja Saint-Jean-de-Malte, há uma parte mais interessante, em torno do principal museu da cidade, que é o Musée Granet, com uma coleção surpreendente para uma cidade pequena.

Igreja Saint-Jean-de-Malte, vista da Rue Cardinale

Já que comecei a falar dos desafios fotográficos, este aqui é um resultado curioso, em que o céu fica com um azul mais profundo do que aquele percebido pelos olhos, que enxergam nesse lugar o azul quase negro do céu noturno. O modo automático da máquina oferece esse resultado quase diurno, quando o que vemos de fato é mais próximo do que conseguimos com um ISO mais baixo e uma exposição mais longa que, na falta de um tripé, termina borrando os contornos. Porém, a imagem vista é ainda mais bonita do que essas fotos conseguem captar, pois elas perdem o acolhimento produzido pela luz amarelada da igreja e pelo tom mais escuro do céu, com a noite já instalada.

O Musée Granet possui várias salas com pinturas mais antigas, de artistas locais que não despertam grande interesse. Porém, ele também dá abrigo a várias obras excepcionais do século XX, sendo que a parte mais bacana era um conjunto de esculturas que inspiraram a Ana a fazer poses giacomettianas.

Giacometti-Ana

Porém, o museu é tão bacana que vai merecer um post só dele, que vou escrever quando eu voltar lá para conhecer as salas que nosso cansaço não permitiu explorar ainda.