23 Rue Lisse des Cordeliers, Aix-en-Provence, dia 14/11/2022

Fomos ao restaurante Yves, numa segunda-feira chuvosa, que era feriado emendado no Brasil. Tecnicamente, ele fica no Centre Ville, mas em uma ruazinha pequena e pouco movimentada, bem no limite ocidental do centro, quase fora. Fica isolado, quase escondido, à prova de turistas acidentais. Não teria chegado lá se não fosse a ótima recomendação de Frédéric Rouvière, que me fez a gentileza de passar uma lista com os restaurantes que ele demorou dois anos para minerar, entre os tantos estabelecimentos turísticos que povoam Aix.

É um restaurante muito particular, em um sentido bem literal, pois é um restaurante de uma pessoa só: o chef Christophe é também o garçom e, para que isso seja possível, a cozinha tem uma janela para a sala onde ficam as mesas. Além disso tudo, é um bom fotógrafo, pois são ótimas as fotos dos pratos, que retirei todas do site do restaurante na terça, sendo que na segunda ele tinha dito que precisava ainda tirar as fotos.

Nossa visita não foi um desafio logístico muito grande para o chefe de si mesmo, pois havia apenas duas mesas ocupadas, e a segunda pagou a conta e saiu logo que entramos. O chef, que supunha que fosse o Yves até ver um nome diferente no instagram indicado pela página do restaurante, foi muito simpático e, logo que nos sentamos, perguntou se éramos brasileiros, pois ele reconheceu que falávamos em português, muito embora a única palavra da língua que ele saiba usar é o "obrigado". Depois notei que, na página do restaurante na internet, fica explicado que Yves é o nome do pai do chef , cujo próprio nome curiosamente não aparece no site.

O menu do restaurante só tem três pratos principais: um vegetariano, um de carne e um de peixe. Os pratos mudam constantemente, mas não todo dia, pois o menu de hoje é o mesmo de ontem. A amanhã é quarta e ninguém sabe o que será, mas a existência de um QR code nas mesas, apontando para uma página no portal de cardápios tastycloud.fr, faz crer que a url do cardápio inconstante seja sempre a mesma.

Como o valor do euro torna todos os preços caríssimos para nosso bolso, nem vimos as entradas e fomos direto para os pratos do dia, e ficamos com peixe e carne.

Comemos os pratos do dia. Um filé de cabillaud (bacalhau fresco), muito bem feito, mas com menos temperos do que seria ótimo.

O que chama mais atenção são os acompanhamentos. Um purê de batata com raiz de salsa, com muita personalidade. Eu reconheci o gosto de salsa, que aqui tem um toque que lembra canela, mas achei que o chef chamava de raiz de salsa o caule, que ele usaria até a base, tal como aprendi a fazer no Laos, com o que eles chamavam de raiz do coentro, e que não era exatamente a raiz.

Porém, pesquisei agora e descobri que existe uma espécie de salsa tuberosa, que dá uma raiz parecida com um nabo, e que é um ingrediente obscuro mesmo na França. Também descobri que salsa é da mesma família (Apiacae) da cenoura e da batata baroa, que inclusive é chamada de mandioquinha-salsa no interior de São Paulo, de acordo com a Wikipedia. Da próxima vez que eu colher salsa lá em casa, vou desenterrar a raiz para ver se dá para cozinhar...

O outro acompanhamento era ainda mais inusitado: um purée de topinambours, creme de coloração acastanhada, feito com a raiz de uma planta que eu não conhecia e que é chamada em português de alcachofra de jerusalém ou girassol-batateiro.

As fotos que encontrei na internet mostram que a raiz parece um gengibre, mas o gosto não tem nada a ver. A flor me parece mais a de um margaridão, mas ele é mesmo um parente mais próximo dos nossos girassóis, ambos sendo do gênero Helianthus.

Flores do Helianthus tuberosus, por acaso com uma borboleta monarca.
Photo by Shane Hoving / Unsplash

O prato mais surpreendente e gostoso foi o de carne, que era o prato de assinatura do chef, como ele nos contou, e que está na foto inicial. Os acompanhamentos são os mesmos, mas a carne é do músculo da bochecha do boi. O chefe nos explicou que se trata de um corte quase sem gordura, mas muito duro, pelo constante uso na mastigação. Descobri que além disso é uma peça com muito colágeno, o que faz com que a carne se torne bastante macia, mas somente após cozimentos muuuuito longos, de várias horas, ou mesmo dias.

O cardápio disse que era joue de boeuf braisé, e eu entendi isso só pela metade. Intuí que tinha a ver com brasa, mas pensei em um assado, quando braiser significa cozinhar lentamente sobre a brasa, o que deve ter dado um trabalho imenso para fazer esse prato. Então, o prato era uma deliciosa bochecha de boi cozida longamente no vinho tinto, ao fogo de brasa.

Já tinha aprendido antes que os bovinos franceses têm uma carne com muito colágeno, o que a torna pouco propícia aos assados e churrascos, mas excepcionalmente adaptadas aos cozimentos longos, já que o molho fica com uma cremosidade que é impossível com a nossa carne magra de nelore. O resultado era tão macio que parecia mesmo era uma terrine, com textura aveludada e um gosto maravilhoso.

Para completar o rol de ingredientes supreendentes, o molho da carne era feito com trumpettes, o que percebi que era um tipo de cogumelo, que completava muito bem o gosto da carne. Descobri que o Yves teve o bom senso de não chamá-los pelo nome popular, trumpettes de la mort, que poderia assustar os clientes. Mas parece que eles não são mesmo venenosos, mas são chamados de trompetes porque têm uma forma de corneta e sua cor negra é que parece ter motivado esse apelido pouco atraente.

Trumpettes de la mort (Fomte: IStock)

De sobremesa, partilhamos uma panacota, nome bonito para o que a própria conta do restaurante nomeava como cheesecake, mas tendo a vantagem de ser apenas o recheio. Estava deliciosa, com essa calda de fruta vermelha (acho que era framboesa...), mas veio sem esse anel que está na foto.

Conta de EUR 48,50 e alta satisfação com a comida e o atendimento, além de uma série de ingredientes surpreendentes que me tomaram mais de uma hora de pesquisa para descobrir o que eram, e só consegui porque o cardápio ainda continuava na página do restaurante.