As pessoas com quem conversamos antes de virmos passar esse ano fora e que passaram pela mesma experiência nos alertaram: tem um período de adaptação que é difícil, mas quando ele passa, as coisas melhoram.  

Ainda não completamos nem um mês aqui e com certeza estamos no período de adaptação.  Tentando entender as novidades no supermercado e na farmácia, como comprar aquele descongestionante nasal salvador (que ao que parece não é vendido aqui), quais os melhores passeios e como ir de transporte público, quais os lugares culturais mais legais da cidade, como funciona o sistema de saúde, como abrir conta no banco, como matricular Analu e Mathias em atividades extras, como me vestir e vestir as crianças pra enfrentar o frio, como diminuir a frequência à loja de kebab, etc, etc, etc... A lista é interminável e pode ser maior ou menor a depender da sua ansiedade.   A minha cresce 3 itens por dia, mas minhas maiores preocupações giram em torno de melhorar a experiência pras crianças.

Apesar de dizer que a escola é legal e que as crianças o receberam bem, ontem caiu a ficha do Mathias que ele está com dificuldade de se enturmar.    Já esperávamos por isso pois ele é introvertido e quando mudou de escola outras vezes isso também aconteceu. Então ele sabe que precisa de um tempo maior pra fazer amigos.  Além disso,  apesar de termos falado que ele poderia continuar a jogar online com os amigos do Brasil, ele viu logo que a diferença de fuso torna esses encontros mais raros e preciosos.

Mathias tem lidado com essa perda social de diferentes formas e tem se mostrado resiliente.  Mas a resiliência não me parece uma característica natural numa criança de 10 anos e cobra seu preço sobre o corpo: ele tem vomitado com certa frequência (até escreveu aqui sobre isso)  e sentiu bastante o resfriado que tivemos.    Por outro lado, voltou a desenhar.   O interesse dele no desenho já veio, foi e voltou algumas vezes.  E, olhando retrospectivamente, ele volta nesses momentos de mudança e desconforto emocional.  

Ana já é o oposto.  Começou a viagem já dizendo que não queria vir, que não teria nada de bom pra ela por aqui e que iria sentir falta de tudo e todos.  Deu muito trabalho nos primeiros dias,  fez muita birra e nos desafiava o tempo todo.  Aí entrou na escola e logo se inseriu num grupo de crianças, fez amigas novas.  A paz (ou o mais próximo dela que conseguimos chegar, rs) voltou a reinar.

Em relação à minha adaptação à cidade, ela é facilitada por sua organização e por uma premissa que sinto que rege as relações por aqui:  na dúvida, as pessoas confiam umas nas outras.    Aqui eles têm uma burocracia própria deles, mas não dá pra comparar com a nossa, baseada na desconfiança.   Por exemplo, aqui,  muitos documentos podem ser "atestados de próprio punho", sem firma reconhecida.  Às vezes tenho a impressão que eles nem querem ver o documento.   Vale o que você escreveu no seu requerimento.  

Por outro lado, não consegui fazer nada online.  Pra tudo há de se ter uma conversa, seja por telefone (ligação mesmo, não whatsapp) ou presencialmente, de preferência.   Isso desde a inscrição das crianças na escola, pedido de passe escolar, tentativa de inscrição em atividades extras, cadastro em biblioteca, etc.  Então tive que romper o bloqueio inicial de falar francês o que fez ele dar uma boa melhorada nesse pouco tempo.

As tentativas de inscrição das crianças nas atividades extras de quarta-feira, quando não há aulas pra eles na escola,  têm sido um capítulo à parte.  A cidade oferece uma gama de opções esportivas e culturais pras crianças neste dia.  Parece que eles incentivam muito os esportes pois a prefeitura divulga um catálogo com todos os clubes e academias que oferecem modalidades esportivas para adultos e crianças.  Eles têm muitas atividades ao ar livre, como esportes coletivos variados, escaladas e caminhadas na natureza. Porém... não estou conseguindo vagas nessas atividades pois as inscrições são realizadas antes do ano letivo começar e pro ano inteiro.  Fuen, fuen, fuen ...

Os últimos dias eu tenho me dedicado a ligar ou visitar (já desisti dos e-mails e zaps) esses clubes e o que eu ouço é sempre um  "Desolé, c'est complet" (Sinto muito, não há vaga).   Me passa a impressão de que as famílias levam a prática desportiva muito a sério, até mesmo pras crianças. O mais comum é cobrarem em torno de 200 euros, por ano letivo e por atividade, e o município ainda disponibliliza "passes" de esporte pra quem não pode pagar o valor anual inteiro.

Felizmente consegui uma vaga numa aula de circo pra Analu e ela já encontrou uma amiga da escola por lá.  Bingo!  Pro Mathias também encontrei um treino de futebol.  Deve fazer uma aula experimental em breve.  Espero que dê certo pois um bom treino de futebol deve aumentar bastante seu nível de felicidade.

Apesar de estar feliz com a oportunidade de estar aqui, lidar com todas essas adaptações têm me tirado o sono.  Já estava com o sono muito leve no Brasil, acordando vez ou outra de madrugada, mas aqui a insônia se agravou.   Hoje, por exemplo,  estou me sentindo como o personagem do Bill Murray no filme "Lost in Translation".   Totalmente fora das zonas de conforto e equilíbrio mas ainda com o olhar de turista, me maravilhando com as belezas, novas experiências e aprendizados.