Ainda vou escrever um post sobre a burocracia francesa e suas exigências kafkianas. Porém, depois de várias frustrações com as minhas tentativas de fazer coisas simples, como adquirir uma linha móvel ou matricular um filho no futebol, cheguei à conclusão de que o núcleo desse problema é o conservadorismo tecnológico dos franceses, que força toda essa burocracia contemporânea a trabalhar como se estivéssemos nos anos 80.

Para quem vem da terra do Pix, em que a coisa mais simples do mundo é transferir dinheiro de forma barata e confiável, é totalmente estrangeira a ideia de que você gastará horas tentando adquirir as fotos das crianças na escola e não vai conseguir, pois todos os seus meios de pagamento são recusados. Após tentar repetidas vezes, falar com o banco por chat, pedir para a família tentar e fazer ligações internacionais para o cartão de crédito, você descobre que, evidentemente sem qualquer aviso, o site da empresa de fotografia somente aceita cartões de crédito europeus.

Quer dizer, nem sei dizer se era essa a exigência, pois tentei com um cartão de débito da Wise, empresa que é baseada no Reino Unido e cujo banco tem sede na Bélgica. O sistema de segurança  Up2Pay do Credit Agricole não aceitou Banco do Brasil ou Itaú, nem mesmo com confirmação com códigos nos respectivos aplicativos. Fiquei com a nítida impressão de que se tratava simplesmente de um preconceito monetário, suspeita que se confirmou quando fui conferir a regulação do programa no site do banco.

Descobri que o sistema primava por aceitar todo tipo de pagamento, mas, como estratégia suplementar antifraude, possibilitava que o usuário excluísse certos endereços de IP, cartões ou países. Então, ficou claro que nossas tentativas de pagamento eram rejeitadas pelas configurações definidas pelos webdesigners que produziram o site da loja de fotos, uma empresa semifamiliar que produz páginas de qualidade duvidosa, como se pode ver no portfolio que ela própria apresenta.

Apesar da chateação com esse labirinto financeiro, insana mesmo não era a vedação implícita dos nossos cartões, mas a falta de opções razoáveis. Em um sistema bancário mais tecnológico, a empresa aceitaria uma transferência como aquelas que fazíamos corriqueiramente antes do Pix. Mas não! A única alternativa a um cartão de crédito ligado a uma conta europeia era o envio, pelo correio, de um cheque nominal.

Isso mesmo! Um cheque enviado pelo correio. Isso é muito mais chocante do que uma verificação de segurança em quatro estágios, com combinação de códigos mandados por SMS, email e aplicativo e ainda uma checagem para se certificar de que você não era um robô. Afinal, a segurança da transação é garantida pelo fato de que bots não enviam cheques.

O fetiche pelo cheque é parente da permanência dos selos, que são estruturas ainda mais antigas. Para pagar os 200 EUR que custa validar o titre de séjour, que garante a regularidade da presença de adultos na frança (as crianças, felizmente, não pagam), não havia uma opção de fazer um depósito na conta do tesouro. O sistema não é muito diferente, mas mostra que a sua evolução se dá por camadas: é preciso comprar um timbre (carimbo ou selo), com um valor determinado, e que tem um código específico.

A compra da estampilha (para usar essa palavra que Drummond resgatou para a posteridade no Enterrado Vivo) pode ser feita via internet, mas é preciso inserir o código do timbre para comprovar o pagamento. Para quem está acostumado a pagar boletos ou fazer depósitos, esse procedimento não é muito mais demorado. Todavia, pareceu-me claro que o sistema de informática, em vez de impor a lógica própria do mundo digital, apenas tenta mimetizar digitalmente as funções analógicas mais arcaicas, como a aposição de um carimbo digital de pago a um formulário digital.

Por falar em formulário, a França é a terra dos formulários. Há um formulário para cada coisa, muito bem explicado, com todos os requisitos a priori explicados nele. Cada formulário tem um número, para deixar claro do que se trata, e tudo isso é muito organizado. Além disso, devo admitir que eles são bem feitos e podem ser preenchidos diretamente no PDF, embora precisem ser impressos para serem assinados.  Como ocorre no Brasil, parece que nem sempre o que está escrito é exatamente o que é cobrado, mas deixarei para falar mais disso quando eu eventualmente conseguir a inscrição na seguridade social e tiver mais experiência quanto aos requisitos implícitos.

O que me estranha nessa abordagem não é a existência de um formulário a preencher, mas o fato de se tratar de formulários físicos, para serem impressos em papel, assinados e tipicamente mandados pelo correio. Não são formulários para serem entregues digitalmente, como aqueles que preenchemos no Brasil para solicitar passaporte e outras burocracias assim.

Fiquei pensando como seria a declaração de imposto de renda e fui descobrir que somente no ano passado acabaram com o envio dos formulários para declaração em papel. Curiosamente, o argumento utilizado não é o da evolução dos procedimentos ou do ganho de eficiência, mas o da necessidade de adotar uma "abordagem eco-responsável", capaz de reduzir o uso de papel nas repartições públicas. Talvez esse discurso ecológico venha a estimular uma modificação na cultura dos formulários, mas isso certamente vai demorar mais do que o curto tempo que teremos aqui na França.

Voltando aos timbres, devo admitir que meu estranhamento é mais simbólico do que prático, pois não decorre propriamente da sua (in)eficiência, mas de uma criação fundada em poemas de Drummond (É sempre nos meus lábios a estampilha...) misturados com a ironia do carimbador maluco de Raul (embora, por aqui, não esteja no horizonte o final feliz do Plunct Plact Zum). Contudo, é de ordem totalmente pragmática a minha estupefação com o fato de que tudo na França funciona por meio de telefone e carta.

Para fazer matrícula das crianças em atividades extraescolares, é sempre preciso ligar para alguém, em dias e períodos determinados. Para usar os termos que aprendemos com a pandemia, a interação é quase sempre síncrona,  o que representa uma obstáculo para quem não domina totalmente a língua e tem de ficar soletrando números de telefone que não decorou ainda e e-mails com partes incompreensíveis na língua francesa, como "araújo", que é pronunciado "arrojô" e não faz parte do repertório de nomes que uma pessoa comum conhece.

Na maior parte das vezes, não há e-mails disponíveis e, quando existem, as mensagens são solenemente ignoradas ou respondidas com um atraso que as torna inúteis. A ideia de que o e-mail é uma mensagem simples, a ser respondida de modo quase imediato, não parece ser muito espalhada nas relações comerciais por aqui. Contudo, preciso fazer a ressalva de que tudo que precisei da universidade foi resolvido rapidamente por correio eletrônico, com documentos assinados digitalmente. Acho que a eficiência do pessoal do Laboratoire de Théorie du Droit me gerou expectativas de que o restante das nossas relações contaria com o mesmo grau de agilidade tecnológica.

Nas nossas relações cotidianas fora da universidade, também percebemos que não se operou aqui a onipresença dos aplicativos de mensagem, como o WhatsApp, que tornaram comuns as interações assíncronas de resposta rápida. Imagino que o WhatsApp tenha representado, no Brasil, uma simplificação da mecânica dos emails, acoplada à substituição dos telefones fixos pelos celulares. Aqui, a falta de uma cultura de correio eletrônico sólida vem acoplada à onipresença dos telefones físicos, o que faz com que o horário de atendimento seja aquele em que há uma pessoa disponível para atendê-lo.

Imagino que o custo da mão de obra inviabilize a multiplicação de secretárias e atendentes,  o que faz com que tudo seja feito para reduzir as interações com clientes e viabilizar uma gestão das atividades com um mínimo de pessoas envolvidas. Por exemplo, são os próprios médicos que costumam cuidar de sua agenda, atendendo ao telefone e marcando as consultas. Como o valor das consultas dos médicos generalistas é tabelado em 25 EUR, que é mais ou menos o preço de um almoço ou de um corte de cabelo, fica mesmo difícil custear uma estrutura de apoio mais complexa.

Creio que uma das consequências dessa gestão minimalista é que todo engajamento tende a ser anual: aulas de desenho, de música ou de esportes são contratadas e pagas de uma só vez, para todo o ano letivo. Imagino que isso facilite a administração financeira e até viabilize preços mais competitivos. Porém, as crianças não são conhecidas pela sua capacidade de garantir o seu engajamento por períodos tão longos, o que torna previsível uma quantidade decrescente de inscritos no decorrer do ano letivo.

Mas, voltando às formas de comunicação, foi na contratação das aulas de futebol do Mathias que usei intensamente uma forma de comunicação que eu julgava relegada à recepção de senhas de banco e confirmações: o SMS. Existe um uso intensivo do WhatsApp em algumas atividades turísticas voltadas a estrangeiros, como o AirBnB, mas isso não permeou as atividades ligadas principalmente aos nativos. Troquei várias mensagens de texto com o diretor da escola, que tentava inscrever o Mathias na federação de futebol, para ele poder integrar a equipe do clube. Porém, como ele era estrangeiro, havia exigências particulares, como a comprovação de residência, feita inevitavelmente por meio de uma fatura de energia elétrica ou telefone.

Depois descobri que dá na mesma, pois é preciso ter a fatura de energia para poder contratar um plano de telefonia que ofereça uma fatura. Embora esteja escrito no rol das exigências que o comprovante de quitação de aluguel (que temos!) é um documento comprobatório suficiente, há um costume arraigado de exigir a fatura de energia, que teoricamente garantiria que a pessoa é de fato a ocupante do imóvel em questão.

Não consegui descobrir uma explicação clara dessa exigência, mas creio que a razão por trás dessa escolha é que existe uma proibição expressa de transferência de contratos de energia. Quando há o ingresso de um inquilino, é preciso cancelar o ajuste anterior e fazer um novo contrato, com toda a burocracia e os custos envolvidos. Nenhum dono de imóvel cancelaria seu acesso à energia por conta de uma locação de curto prazo, até porque essas mudanças têm custos e, para variar, os contratos são anuais.

Essa estabilidade aumenta a confiabilidade do documento, o que acaba tornando a conta elétrica o documento inicial para a comprovação de residência. Ao mesmo tempo, esse mecanismo inviabiliza que uma família sem um contrato anual de locação, como a nossa, venha a ter em seu próprio nome um comprovante de residência universalmente aceito.

Quando chegamos aqui, conseguimos utilizar a quitação da locação (pelo período de um mês e meio...) para ter acesso a serviços menos burocráticos e mais urgentes, como a escola e o serviço de ônibus. Esse sucesso inicial fez com que não pedíssemos à locadora o fornecimento das faturas e das cópias de identidade, que no início deste segundo mês se mostraram como fundamentais para uma série de outros serviços, como fazer inscrição na federação de futebol, abrir conta em banco e ter acesso à seguridade social. A combinação de a proprietária do apartamento ser uma pessoa idosa, com pouca habilidade digital, e de o imóvel ser efetivamente administrado pela sua filha, que agora está viajando, acabou atrasando um pouco a solução desses entraves, mas certamente não vai demorar muito até conseguirmos juntar os documentos comprobatórios adequados.

Nesse meio tempo, a concentração de frustrações burocráticas me levou a pensar sobre os motivos que levariam essa questão territorial do comprovante de residência a ser tão central. Concluí, talvez erradamente, que tudo isso deriva do fato de que, por aqui, a comunicação prevalente ainda ser feita mediante reuniões agendadas, telefones físicos e cartas, que são visceralmente ligados ao domicílio. Para quem vem de um país no qual as comunicações já transitaram para o e-mail há bastante tempo e existe até citação judicial por WhatsApp, essa fixação com um endereço físico parece muito estranha.

Para quem está imerso na cultura francesa, não deve causar estranhamento que a abertura de uma conta no banco dependa do agendamento prévio, por telefone, de um encontro presencial com a pessoa incumbida de cuidar desse assunto. De certa forma, eu até devia estar acostumado com isso, p0is na UnB é normal que você não consiga fazer andar certos processos quando o único funcionário responsável por uma certa atividade está de férias ou de licença. Foi exatamente essa a lembrança que tive quando me disseram, em na agência central de um grande banco, que minha demanda por abertura de conta seria inviável na próxima semana porque a pessoa que faz isso está doente. Imagino que essas situações são naturalizadas pela sua regularidade e que elas não sejam sentidas como um problema sério pelos franceses que sempre tiveram comprovantes de residência e conta em banco, e que compõem tanto a maior parte da população votante quanto a quase totalidade das pessoas que compram fotos escolares.

Falar das fotografias me conduz de volta para a vilã do dia: a empresa Labodelmas e seu famigerado site. Incrivelmente, e contrariando a própria lógica local, a página dela não indica sequer um telefone para o qual seria possível ligar. Tampouco há um e-mail de contato, mas isso já é algo com o qual estamos acostumados. No site, o que existe é um formulário digital que eles afirmam que podemos preencher em 2 minutos, o que é verdade, mas que simplesmente não é respondido. Tudo o que mandamos nesses formulários foi solenemente desconsiderado.

As únicas informações que conseguimos ter dessa empresa foram por meio de um telefone que não consta do site, nem do folheto da empresa, nem dos repetidos e-mails em que recebíamos a notícia crua de que o pagamento havia sido novamente rejeitado. A única forma de acessar o telefone é pesquisar na internet, pois o Google,  tudo sabe. Para completar a situação totalmente kafkiana, a ligação cai em uma mensagem automática que nos oferece (tcharam!!!) o e-mail no qual poderíamos solicitar informações, e que não está em nenhum outro lugar. Mas não caímos nessa armadilha, pois já sabíamos que essas mensagens vão parar em no buraco negro das solicitações ignoradas.

Foi ligando que descobri que o site estava programado para somente aceitar cartões franceses e que ninguém ali sabia se eram aceitáveis outros cartões europeus, pois as definições de pagamento tinham sido todas configuradas pela empresa de internet. A primeira moça que nos atendeu foi muito empática e, frente à excepcionalidade do nosso caso, prometeu enviar um e-mail com os dados para pagamento por transferência bancária. Esperamos, esperamos, e a mensagem não chegou. Preenchi novamente o formulário de contato, indicando que talvez eu tivesse soletrado mal o e-mail, e depois liguei para indicar o preenchimento do formulário (alguém lembra de que houve um tempo em que era razoável telefonar para dar notícia do envio de um e-mail?), ocasião em que me disseram que estava tudo bem. Esperamos mais ainda e, algumas horas depois, resolvi ligar novamente para perguntar o que estava acontecendo. Foi quando um senhor atendeu e disse a palavra-chave francesa para indicar que será dada uma resposta que você não quer ouvir: "desolé".

Estou desolado, mas a senhorita estava equivocada e não há autorização para pagamento por transferência bancária, em caso nenhum. Entendo vossa dificuldade, mas não tenho como resolver. Ele também não sabia dizer que cartões eram aceitáveis, nem dar qualquer pista para um encaminhamento razoável da questão. E ficou evidente que ninguém iria avisar que o e-mail que prometeram encaminhar nunca seria enviado.

Foi neste momento que pedi socorro ao meu velho amigo Matthias. Como ele mora na Bélgica, imaginei que seu cartão talvez viesse a ser aceito e ele acabou salvando meu dia ao fazer essa compra. Mas é claro que, ao receber uma mensagem de WhatsApp solicitando pagamento, ele primeiro desconfiou que era golpe e me mandou um e-mail para confirmar que a mensagem original era minha mesmo. Esclarecido que, apesar de ter toda a cara de fraude, tratava-se de um verdadeiro pedido de ajuda, ele nos tirou imediatamente dessa enrascada. Nessas horas em que ficamos sem saída, são mesmo os amigos que nos salvam.

Quando comprar fotos no site é mais trabalhoso do que inscrever as crianças na escola pública, é porque alguma coisa de estranho há nos níveis de dificuldade burocrática de uma nação.  Pelo que entendi, essa situação decorre da  persistência de um modelo social analógico, comprometido com a manutenção da viabilidade de práticas como o envio de cheques pelo correio. Nesse contexto, a comprovação da residência se perpetua como critério básico de identificação pessoal, uma estratégia que não é apta a garantir que os compromissos financeiros serão pagos, mas que parece assegurar simbolicamente que a pessoa com quem se fala é um membro respeitável da comunidade daqueles em quem se pode confiar.